A vida entre linhas
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- Categoria: Portfólio
- Publicado: Quarta, 26 Julho 2017 14:48
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Sobre a vida alinhada, a vida entrelinhas e a vida nas linhas
Fazer fotografia de rua (street photography) é observar o dia a dia da cidade, entender um pouco desse cotidiano, participar da vida da cidade em que vivemos ou as que visitamos. Fotografia de rua é o registro da realidade em forma de arte. Mas que realidade? Uma questão que tem me intrigado é o desencaixe da vida atual, como as pessoas se sentem excluídas ou insatisfeitas, numa época que as principais doenças são depressão, ansiedade, pânico. Como esse estilo de vida estressado pode (ou se impõe para) aparecer nas fotos? Tentando entender isso melhor, fui pensando, e clicando. Vendo as minhas fotos, lendo livros, falando com pessoas, foram surgindo lampejos de ideias.
A vida entre linhas é uma série de fotos iniciada em 2016, e ainda em construção. Abaixo veja algumas das fotos (ao clicar elas abrem em uma janela maior, no flickr):
>>>Veja a série completa aqui<<<
Bem, a vida pós-moderna parece pedir linhas retas, constância, previsão, segurança, planejamento, pede que sigamos essas linhas pré-determinadas que nos levarão a ser uma pessoa de sucesso, é só prestar atenção aos comerciais de TV. Tentamos, mas não conseguimos, viver em linha reta o tempo todo, afinal a natureza humana é irregular. As vezes, vendo a vida dos outros, no Facebook por exemplo, temos a impressão que a vida dos outros segue na linha, reta e sucesso, e só a nossa é “bagunçada”. Será?
Veja o Poema em Linha Reta de Fernando Pessoa ao final desse texto, nele o poeta se cansa da perfeição dos outros, enquanto ele parece ser o único que erra, o único ridículo, o único vil, enquanto os outros são apenas perfeição. Acho que tentamos fazer isso, ser retos, perfeitos, andar na linha, mas vida é orgânica, acontece nas entrelinhas, mudamos de ideia, falhamos, fazemos caminhos errantes. Nosso discurso pode ser de linha reta, mas sabemos que vivemos num emaranhado de linhas confusas.
Ora, voltando a falar da realidade, aquela que a fotografia de rua busca retratar. Existe um certo caos na realidade, pois as coisas acontecem em ritmo frenético e sem parada, múltiplas e incontáveis “coisas” acontecem ao mesmo tempo. A realidade é como uma série de imagens numa quantidade infinita a cada segundo. Não podemos reter a realidade, não damos conta de tudo, o que podemos é apenas reter algumas imagens criadas por nossas câmeras, como disse Susan Sontag (em Ensaios sobre a Fotografia, editora arbor), mas essas imagens estão para a realidade como as pegadas estão para a pessoa que as deixou, é algo palpável que restou do impalpável que aconteceu.
Assim a imagem registrada pode, às vezes, ajudar a organizar nosso entendimento do real, pois escolhemos um instante dos infinitos possíveis, e nele encontramos uma chave para ler o real, ou para reciclar a realidade. A imagem não é aquela realidade da cena fotografada, mas é uma nova realidade, assim como uma pegada não é a pessoa que a fez, mas é uma pegada real. A fotografia então, entendo, é uma realidade criada a partir da realidade abstrata e maior, a vida.
Assim, a fotografia pode ajudar a amenizar o caos da vida...hum, aqui fui longe demais na afirmação, acho… Será que a fotografia pode ajudar a nos tratarmos dos males da vida pós moderna? Mas tenho a impressão que sim, sinto isso acontecer comigo, mas não sei bem. Vamos voltar à fotografia de rua.
A vida entre linhas - Brasília 2017
Ao sair para as ruas para fotografar, tento ver, e quem sabe capturar, imagens dessa vida caótica que está em constante relação com as linhas retas e frias, com as curvas geométricas, com os lugares planejados. Falo de caos, mas é um caos lindo, e a imprevisibilidade humana é nossa riqueza. A fotografia entre linhas que faço é uma busca por mostrar a organização fria da engenharia comportando a vida orgânica que na verdade não pode ser contida por ela. Não seguimos as retas tão certinho como estas sugerem. Não sabemos muito sobre para onde vamos, mas vamos mesmo assim. Temos o sonho de seguir, e ir longe. Navegamos mais como um barco a vela, tentamos seguir as linhas mas por vezes é impossível.
A vida entre linhas - São Paulo 2017
Então registro pegadas da vida entre linhas, entre retas, entre curvas, essa vida orgânica e disforme. Acho que a vida aparece nas entrelinhas.
Yuri Bittar
http://www.yuribittar.com
Poema em linha reta
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)