Trabalho, pandemia e opressão (Diário da quarentena - 3)

Nesta pequena nota reflito sobre o trabalho, o lugar do humano, a persistência da opressão e o poder da arte. Esta é uma nota, não chega a ser um artigo, não faço uma investigação nem pretendo uma conclusão. Escrever me ajuda a pôr o caos em ordem, e se puder colocar alguma dúvida em sua cabeça, já fico satisfeito. 


(montagem a partir de fotos do livro Trabalhadores)

“No lado de cá do mundo, a história é uma espiral sem fim de opressões, humilhações, devastações. Mas também da infinita capacidade humana para sobreviver a todas as pestes, todos os males, inclusive os mais cruéis: a cobiça, a ambição.“ (Sebastião Salgado)

Neste que é um dos meus livros favoritos, Trabalhadores, Salgado viajou o mundo para mostrar o trabalho, humano, manual e industrial. As maravilhosas fotos desta obra foram feitas entre o final dos anos 1980 e o começo dos 1990. O autor já previa, em 1992, que seu livro seria um registro de algo que desapareceria, o trabalho como concebido na revolução industrial, o trabalho na fábrica, o estar empregado de uma grande empresa. Ele via nesse tipo de trabalho algum tipo de opressão, mas com o fim deste, o que viria? Talvez um vácuo ainda pior. 

Realmente o trabalho como o século 20 conheceu está praticamente desaparecendo.Hoje apenas uns 30 milhões de brasileiros tem carteira assinada, ou seja, apenas 15%. E desses muitos devem trabalhar em pequenas e micro empresas. (fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2019-07/cresce-trabalho-com-carteira-assinada-no-2o-trimestre-aponta-ibge

Imaginem então que aquele emprego dos sonhos, em uma grande empresa, com muitos benefícios, plano de carreira, segurança, hoje é um sonho distante para a maioria dos brasileiros, e creio que no mundo todo é a mesma coisa. 

Ao mesmo tempo tem crescido o apoio ao “empreendedorismo” (para mim um “se vira”) e o processo de “uberização” está atropelando tudo. Estamos no momento economicamente mais frágil para receber uma pandemia.  Mas ela veio.


(Foto: Yuri Bittar, 2017)

Nesse momento de crise tripla, de saúde, social e econômica, surge de tudo, solidariedade, boas ideias, novos líderes, mas também há muitos que se aproveitam, alguns sobem preços, outros aplicam golpes, alguns políticos agem com egoísmo e desumanidade. A opressão de sempre se renova, é imune ao vírus. 

Lembro que os opressores sempre precisam que uma parte dos oprimidos os apoiem e façam o serviço sujo. O que seria do senhor de engenho sem o capataz? 

Assim algumas pessoas que claramente são vítimas, em vez de se unir e se defender, se auto-atacam. Muitos gritam que vale a pena morrer pelo capital, que ele mesmo não terá acesso. 

Paul B. Preciado, em recente artigo, vai mais longe, para ele vivemos uma mutação (social, do trabalho) e podemos deixar de ser passivos e nos tornar agentes da mudança: 

“É necessário passar de uma mutação forçada para uma mutação deliberada. [...] Vamos usar o tempo e a força do confinamento para estudar as tradições de luta e de resistência das minorias que nos ajudaram a sobreviver até agora. Vamos desligar os celulares, desconectar a Internet. Façamos o grande blecaute diante dos satélites que nos observam e imaginemos juntos a revolução que virá.” (Preciado)

Não estou propondo a revolução, pois não acredito em violência. Mas parece (não digo que é, mas talvez seja) o fim de uma era. O que virá pode ser muito melhor, muito pior, ou “meia-boca”. Em alguma medida podemos tentar agir sobre isso e conduzir para um lugar melhor.


(Foto: Yuri Bittar, 2017)

Nestes dias tão doidos às vezes fico desanimado. Mas é bom ver que mesmo alguém que viu pessoalmente inúmeros horrores que o homem é capaz, como Salgado, ainda pode ser otimista (infinita capacidade humana para sobreviver a todas as pestes, todos os males).

Mas fui procurar o que ele disse em 2020, sobre a pandemia: 

“Por que estamos sendo atacados assim? Porque é muito fácil. O ser humano saiu do planeta. [...] Somos aliens dentro do nosso próprio planeta.” Mas ele diz ainda “Só nas grandes catástrofes surgem as grandes solidariedades e reais preocupações com o futuro da Humanidade. Isso é o que teremos de fazer agora.” (fonte: http://aldeianago.com.br/artigos/90-meioambiente/23551-somos-aliens-dentro-do-planeta-por-sebastiao-salgado- )

Então amigos, se cuidem, fiquem em casa, usem e abusem da arte, estudem e se preparem, pois não sei o que virá, mas algo virá! 

Referências:

Preciado, Paul B. Aprendendo com o vírus. abril/2020 - acessado em https://medium.com/textura/aprendendo-com-o-v%C3%ADrus-1f8542d3ed78

SALGADO, Sebastião. Trabalhadores: uma arqueologia da era industrial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

Mais sobre Sebastião Salgado: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa2597/sebastiao-salgado